terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Lici e o Espelho 6

http://denismello.blogspot.com.br/2011/11/beladona.html.




Espelho: — Bom diaaaa!
Lici: — Oi, Espelho, bom dia.
— Que carinha e essa de quem não dormiu direito?
— Pois é, passei a noite toda pensando...
— Em que ou em quem?
— Na solidão...
— Solidão? Como assim?!
— Sabe, Espelho, eu sempre gostei da solidão... até agora...
— Credo! Gostar da solidão?! Como é isso?
— Quando criança, eu adorava ficar sozinha, criar meu próprio mundo, meus próprios personagens, meus próprios conceitos de pode ou não pode, sabe?! Sem ninguém para dar ordens ou palpites. Era fascinante e muito coerente. Mas a solidão adulta não é assim. É muito diferente. É cruel.
— Não entendo, não tem lógica! Solidão é sempre solidão!
— Não, Espelho, não é. Quando criança, minha solidão era um mundo cheio de coisas legais, um laboratório improvisado no depósito de casa, uma plateia de plantas me aplaudindo quando eu misturava alguns remédios vencidos com desinfetante e terra, e deixava sob o Sol para ver a mistura cristalizar e, com orgulho, mostrar a ela (plateia) que eu havia “criado” vidro. Quando adolescente, minha solidão era um quarto com portas fechadas, um rádio, fitas cassetes e papéis... meus fiéis papéis... nos quais eu escrevia tudo aquilo o que eu queria contar à única pessoa que me entenderia... eu mesma. A solidão adulta, Espelho, passa longe até mesmo daquela solidão rebelde, ansiosa por sair de casa e morar sozinha. Aquela tentativa de continuar mantendo o seu mundo girando, apenas com a sua vida. Mas com o tempo isso acaba. Você cresce e o encanto, cultivado por anos, vira uma carrancuda e séria testa franzida. Aí é que aparece o vírus da solidão adulta. Você tem Amigos, Família, “Amores”, mas não tem mais você. Você assiste, com certo desespero, seu mundo ser invadido por situações que estão fora do seu controle, que não dependem só de você. E você se perde. Você não sabe mais o que te agrada, sua comida favorita, seu cantinho perfeito. Tanto faz. Seus momentos de solidão são vazios de você e cheios de muita gente, de muitos mundos dessa muita gente... e você quase não se encontra mais nisso tudo...
— Nossa, Lici!
— Pois é, Espelho, de repente, e muito de repente, não é mais fascinante e coerente ficar só...
— Nossa, eu queria te ajudar, mas... eu não sei o que dizer... vem cá... me dá um abraço...
— Obrigada, Espelho...
— Isso... pronto... tá melhor?
— Estou bem...
— Então agora pega um pano e um pouco de água e sabão.
— Como? E no que isso vai me ajudar?
— A você eu não sei, mas a mim sim. Você tá com uma cara muito oleosa. Ensebou-me todo!
— Aff! Não sei porque ainda perco meu tempo com você!
— Lici, volta aqui! Tô falando sério! Não consigo ver nada! Tá tudo embaçado!... Liciiiii! Estou cegooooo! Aaaaaaaahhhhhhh!!! "I just called... to say... I love youuuu..."


Lici Cruz