segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Às garotas e aos garotos do século passado



Ei, bonitona, por que você coleciona tantas contas e correspondências comerciais? O que houve com os seus papéis de carta? E com a espera no portão pelo carteiro com as notícias a punho da amiga que se mudou? Que carinha mais abatida. Onde você guardou seu brilho de morango? Menina, o que houve com seus pés?! Há quanto tempo eles não tocam o chão, nus? Me conta, o que anda te tirando o sono? Lembro-me bem que da última vez o motivo era aquele garoto (ai... ai...) do colégio, ainda é isso? Relaxa, pegue aquela sua fita K7 “Pop Cine Pop”, aquela que tem a música do filme “Footloose”, e coloque para tocar! Solte o cabelo e pule em cima da cama! É um santo remédio! Se não funcionar? Não se preocupe, lembra que você marcou com a sua Amiga de ir à casa dela para atualizarem as novidades? Então! Ah, só não esqueça de encher o pneu da bicicleta e de levar o seu caderno de perguntas porque ela ainda não respondeu.
Psiu, você, garoto! Aonde vai com tanta pressa? A banca ainda não abriu. Sei que você deve estar ansioso para comprar suas figurinhas. Falta muito para completar o álbum? Posso te contar um segredo? Sabe aquela menina que você gosta? Então, ouvi ela falando de você hoje no recreio. Não, não sei o que ela disse, mas ouvi o seu nome. Nossa, eu já ia esquecendo de te avisar, sua mãe disse que aquele seu Amigo passou na sua casa e disse que o jogo vai ser amanhã, às três e meia, e que é para você levar a sua bola porque a dele furou e... o que houve com as suas mãos? Há quanto tempo você não sobe em uma árvore? Enfim, depois a gente cuida disso, agora se apresse, tire essa camisa e esses sapatos apertados que vem uma chuva boa por aí e, com o calor que tá, a gente não pode perder uma gota sequer. Não se preocupe, “Os cavaleiros do Zodíaco” só começa às seis, a gente tem tempo.
Ah, só mais uma coisa, vocês dois, desfranzam essas testas, deixem para franzi-las quando forem adultos e tiverem problemas “reais” para isso. Por enquanto aproveitem, porque essa fase passa muito rápido... muito... e dizem que deixa uma saudade...

Lici Cruz

O importante é a Rosa



Que a vida é breve isso é sabido, e é quase nato da gente saber disso. Porém, mais efêmera do que o nosso desfile por esse mundo, é a nossa vida útil. E como essa utilidade é precipitadamente descartável quando julgada por outros.
Todos os dias e a todo instante, várias “amizades” são desfeitas, relacionamentos desrelacionados, acordos rompidos, promessas não cumpridas, palavras não ditas, amores desamados, presenças evitadas ou repugnadas, sonhos abandonados. Tudo pelo mesmo motivo, a insatisfação.
As pessoas estão cada vez mais urgentes da felicidade plena, e qualquer coisa ou alguém que destoar um tantinho dos seus propósitos e concepções, é descartado, rápida, grosseira e até indiferentemente. 
Estamos tão substituíveis e imediatos que estamos perdendo a nossa capacidade de conviver com os nossos espinhos. E todos nós os temos. Os espinhos dos defeitos, dos problemas, das mágoas, do passado (mal) vivido, das doenças, das carências, dos distúrbios, da estética “imperfeita”. Além disso, procuramos no outro, o tempo todo, a maior quantidade possível de espinhos para que possamos justificar a nossa ausência, a nossa aversão, o nosso julgamento e a nossa verdade. E é aí que falhamos. Por nos prendermos e atentarmos tanto aos maus predicados e aos detestáveis atos do outro, nos recusamos a enxergar a Rosa que ele carrega, as que já carregou e as que ele ainda irá carregar. E, muitas vezes, nessa cegueira, deixamos de perceber a nossa própria Rosa. E todos nós a temos.
Saber conviver com os espinhos e destacar as boas qualidades no meio desses “maus” atributos, é dar sentido à vida útil, é tornar sua inevitável brevidade mais prazerosa e menos frustrada e é, acima de tudo, entender que por mais complexo e extenso que pareça ser o caminho até às Rosas, na maioria das vezes, apenas parece.

Lici Cruz

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Lici e o Espelho 6

http://denismello.blogspot.com.br/2011/11/beladona.html.




Espelho: — Bom diaaaa!
Lici: — Oi, Espelho, bom dia.
— Que carinha e essa de quem não dormiu direito?
— Pois é, passei a noite toda pensando...
— Em que ou em quem?
— Na solidão...
— Solidão? Como assim?!
— Sabe, Espelho, eu sempre gostei da solidão... até agora...
— Credo! Gostar da solidão?! Como é isso?
— Quando criança, eu adorava ficar sozinha, criar meu próprio mundo, meus próprios personagens, meus próprios conceitos de pode ou não pode, sabe?! Sem ninguém para dar ordens ou palpites. Era fascinante e muito coerente. Mas a solidão adulta não é assim. É muito diferente. É cruel.
— Não entendo, não tem lógica! Solidão é sempre solidão!
— Não, Espelho, não é. Quando criança, minha solidão era um mundo cheio de coisas legais, um laboratório improvisado no depósito de casa, uma plateia de plantas me aplaudindo quando eu misturava alguns remédios vencidos com desinfetante e terra, e deixava sob o Sol para ver a mistura cristalizar e, com orgulho, mostrar a ela (plateia) que eu havia “criado” vidro. Quando adolescente, minha solidão era um quarto com portas fechadas, um rádio, fitas cassetes e papéis... meus fiéis papéis... nos quais eu escrevia tudo aquilo o que eu queria contar à única pessoa que me entenderia... eu mesma. A solidão adulta, Espelho, passa longe até mesmo daquela solidão rebelde, ansiosa por sair de casa e morar sozinha. Aquela tentativa de continuar mantendo o seu mundo girando, apenas com a sua vida. Mas com o tempo isso acaba. Você cresce e o encanto, cultivado por anos, vira uma carrancuda e séria testa franzida. Aí é que aparece o vírus da solidão adulta. Você tem Amigos, Família, “Amores”, mas não tem mais você. Você assiste, com certo desespero, seu mundo ser invadido por situações que estão fora do seu controle, que não dependem só de você. E você se perde. Você não sabe mais o que te agrada, sua comida favorita, seu cantinho perfeito. Tanto faz. Seus momentos de solidão são vazios de você e cheios de muita gente, de muitos mundos dessa muita gente... e você quase não se encontra mais nisso tudo...
— Nossa, Lici!
— Pois é, Espelho, de repente, e muito de repente, não é mais fascinante e coerente ficar só...
— Nossa, eu queria te ajudar, mas... eu não sei o que dizer... vem cá... me dá um abraço...
— Obrigada, Espelho...
— Isso... pronto... tá melhor?
— Estou bem...
— Então agora pega um pano e um pouco de água e sabão.
— Como? E no que isso vai me ajudar?
— A você eu não sei, mas a mim sim. Você tá com uma cara muito oleosa. Ensebou-me todo!
— Aff! Não sei porque ainda perco meu tempo com você!
— Lici, volta aqui! Tô falando sério! Não consigo ver nada! Tá tudo embaçado!... Liciiiii! Estou cegooooo! Aaaaaaaahhhhhhh!!! "I just called... to say... I love youuuu..."


Lici Cruz

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Quenga que morreu Santa



Quenga nem sempre teve esse nome. Foi concebida com nome de menina gente. O fato foi que cresceu e, quando chegou a hora de viver, foi batizada pela saliva daquela gente que gosta de falar.
Ela nunca entendeu como funcionava a “Cartilha da boa conduta”. Uns diziam que ela não devia comer carne, outros que não usasse roupas ousadas. Muitos recomendavam que não saísse de casa. Alguns pediam para que não respirasse.
Sobre tantos ensinamentos puritanos da “cartilha”, o que mais intrigava Quenga era que muitas pessoas não os cumpriam ou os burlavam, e sempre tinham “motivos” que justificavam isso.
Um dia, Quenga, sentada à beira de um colapso, começou a pensar na vida. Lembrou-se das pessoas que amou, das que ajudou, das que defendeu, das que ouviu, das que salvou, das que perdoou. Lembrou-se de quantas ofensas suportou, de quantas lágrimas engoliu para que outros pudessem sorrir e de quantos sorrisos evitou por achar que não podia.
Foi aí que Quenga percebeu que nunca tinha vivido para ela mesma e que se isso tivesse acontecido, não seria esse nome que escolheria.
Ela então voltou para casa, vestiu-se como gostava, comeu o que queria, ouviu sua música preferida no volume mais alto e dançou com o vento mais doce no cabelo.
No outro dia foi encontrada morta, com seu batom mais vermelho e seu sorriso mais lindo nos lábios. Nem uma marca no corpo, nem no sangue e nem na alma. Morreu porque a felicidade não coube em seu peito quando descobriu o quanto era bom se amar.

De todas as frases ditas após sua partida, houve uma que mais ecoou das bocas de ácidas salivas: “Ela era uma pessoa maravilhosa, tão jovem, tão linda, ainda tinha tanto pela frente, pena que não soube aproveitar a vida...”.

Lici Cruz

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O BOM NOSSO DE CADA DIA


Quando levamos uma vida social ativa (por exemplo, trabalho, contato com seres da mesma espécie), saímos não somente de casa, mas também da nossa casca protetora e individual. Nesse processo diário e rotineiro, precisamos (e como precisamos!) fazer uso de uma poção mágica chamada “interação social”. De fato que no início é um pouco mais difícil para alguns e até, no decorrer do tempo, limitado para outros, mas é preciso ao menos uma dose diária para que nossos dias possam... digamos... fluir.
Como elementos base dessa poção, temos a família, os colegas de trabalho, os amigos, o tio da padaria, o motorista do ônibus, a vendedora da loja de calçados, o porteiro, a recepcionista do consultório médico e tantos quantos caibam em nossas possíveis dezesseis horas diárias de olhos abertos. Já para ativar as propriedades sociais desses elementos, fazemos uso de um pó mágico chamado “comunicação”, o qual dispensa definições.
Para que toda boa poção se complete e tenha o efeito esperado, é necessário o uso correto de palavras mágicas, que variam conforme a necessidade e a ocasião. E é aí que a coisa costuma desandar. Muita gente confunde, por exemplo, um “Oi!”, um “Olá!” com um “Bom dia!”. “Mas tia Lici, não é a mesma coisa?”. Não.
Palavras mágicas como “Bom dia!” devem (pelo menos deveriam) ser pronunciadas com o poder e a verdadeira intenção que têm. Não é um simples cumprimento, é um desejo de um BOM dia que se faz.
Já vi e ouvi (ou só vi, porque às vezes só os lábios se mexem, som que é bom nada) e vejo/ouço todos os dias, pessoas “olhando” umas para as outras e balbuciando um “bom dia” para o chão, para a parede, para alguma alma penada que estava passando por ali no momento (ui, arrepiei!) ou até para o seu próprio intestino (que é onde deve ir parar o “bom dia” engolido).
É sério! Qual a necessidade de dizer algo tão bom, sem querer, sem ânimo e com tanta indiferença? Eu sei, não existe lei que obrigue, que meça a intensidade ou que institua a análise da veracidade de um genuíno “Bom dia!”. Mas, valha-me Deus! É até pecado tanto desânimo (ou mau-humor?!)! 
É assim, e assim ficamos: se não quer que seja bom, que seja “Oi!”. Caso não tenha “tempo para essas frescuras sociais”, combinamos o seguinte: balance a cabeça e dê um sorrisinho, se possível, para não assustar a nossa criança interior, e entenderemos o recado. 



Lici Cruz